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quinta-feira, junho 26, 2003

Não há coincidências?

"Era a primeira vez que Emma ouvia dizerem-lhe essas coisas; e o seu orgulho, como alguém que repousa num banho de vapor, espreguiçava-se molemente e todo inteiro ao calor daquela linguagem."
Gustave Flaubert, Madame Bovary

"Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido (...)"
Eça de Queirós, O Primo Basílio

quarta-feira, junho 25, 2003

"(...) ao iniciar-se a composição, já a inspiração está no declínio, e a mais gloriosa poesia que jamais foi comunicada ao mundo é, provavelmente, uma ténue sombra das concepções originais do Poeta."
Shelley, Defesa da Poesia



O que se manuscreve
é tão só palimpsesto
do imaginado:

pens'árvore, porém, escre'vinho.
Vi em Pollaiuolo
o brando espectáculo do teu martírio -
o circo de uma ascensão
sem feras, ou sangue, ou morte.

Eras mais árvore em El Greco,
músculo e uma seta
a trespassar o êxtase
de vós, mártires, íntimo.

terça-feira, junho 24, 2003

O artedefurtar já tem mail: artedefurtar@hotmail.com
Estamos em vias de apresentar novidades que tornarão este blog o mais interessante da blogosfera.
Saudações.

Para a Cláudia

I
Purifiquei-me
antes de te visitar.
Quarenta anos esperei
na deserta solidão do corpo.
Eis-me aqui, perante ti,
no vazio do vazio mais vazio.

Eras distância e amava-te.


II
Na fonte, entardeceu.
A pacata mulher do camponês
fez-se nascente de lágrimas.

III
Todas aves voam.
as que não,
enterram a cabeça n’areia.



Este texto é não te ter.
Fiz-te muita água nos olhos. Muita. Fiz-te água nos olhos. Fiz-lhe água nos olhos. Muita. E ela, bichana, vinha, apertando-me o sexo entre as mãos brancas frágeis e iniciava-me nos segredos da sua boca. Eu vinha-me nas mãos dela e sobre mim. E eu vinha-me sobre ela e em mim. Dentro de mim. Dentro de pensá-la.
Eu doía-lhe. Quado saía de casa, doía-lhe. A saudade dos meus dedos na sua vagina, doía-lhe. O fôlego do meu sexo dentro dela, doía-lhe. Doía-lhe quando não me vinha dentro dela. Doía-lhe não se vir para mim. E os meus dedos, húmidos dela, na minha boca e na sua.
Ficámos uma tarde inteira, nús mortos, de braços abertos, de corpos abertos ao desejo sem deixá-lo ultrapassar o limiar dos corpos, desses mesmos corpos que o chamavam, que o aguardavam e que o afastavam cruelmente. Nessa tarde, os nossos corpos não se renderam.
Há tantas coisas que se desejam dolorosamente. Dor, apenas dor. A de as antever perfeitas polidas e de nunca nos chegarem à voz e às mãos assim: perfeitas polidas, como na oficina da mente. E eu trabalho-te, na minha mente. A imagem de urinares para mim, fazendo-o, não como de hábito, mas como se desenhasses, do teu interior, um fio de ouro e ele caísse num silêncio de cristal a quebrar-se. O efeito do silencio no meu corpo seria a morte e os despojos do meu prazer no chão seriam o amor por consumar.
Lavas-me os pés com bálsamos e unges-me o corpo de óleos. Escorregamo-nos. De repente, acordei e estávamos tristes e verdadeiros. Tudo se despedaçava na espuma que os nossos movimentos produziam na água. Ali estávamos, sem magia, muito nós, muito despertos, como se nunca mais fosse possível experimentar o torvelinho da embriaguez. Nunca mais os incêndios, belos incêndios extintos, da antiga voracidade.
Era uma mulher tão gorda, tão gorda, que a própria sombra transbordava dela. Nascera de cesariana numa poeirenta manhã de Julho e o seu peso era tal que, para pô-la no berço, duas enfermeiras quase precisaram da ajuda de uma terceira. Na escola (se escola houvesse onde tais coisas se soubessem) era conhecida como "a irmã de Gargântua". Aos vinte e cinco anos, ultrapassadas as doze dezenas de quilos, apaixonou-se cardiacamente por um centauro. Cultivava, à época, o inusual gosto por meditações helénicas e, em resultado disso, a sua imaginação povoara-se de Ariadnes, Níobes e outras mitologias. O mundo real apequenara-se e apenas nas dimensões paralelas que irrompiam dos interstícios do seu tédio físico adquiria levezas atmosféricas. Sedentarizara-se. Desfamiliarizou-se dos objectos e de certas palavras. Repetia com frequência maníaca a palavra "arbusto". Então, conheceu o centauro. Dedicou-lhe um poema mental que não ousou escrever. Da janela do quarto (vivia num pequeno apartamento) observava as mutações cromáticas das tardes, deleitando-se nos vagares dos progressivos poentes, até que lobrigava, ao longe, um perfil semi-humano e o seu corpo ficava todo nuvem, à espera de trovejar. O centauro permanecia horas no passeio, de olhar híbrido e imóvel cravado no vidro atrás do qual se escondia, mais uno mas não menos estranho, o corpo que lhe devolvia o olhar de angústia suplicante. Assim se passaram meses. Depois, durante muito tempo, o centauro não veio e ela enlouqueceu. Abocanhou, triste, pesadelos, desfez-se de cores que guadara desde a infância e, por fim, no dia em que a morte pousou negra no parapeito da sua dor, viu, através da ferida que entretanto se lhe abrira no pulso, as formas amadas - uma estátua de sal e mármore sulcadas de lágrimas.

Este é o blog dos sem-blog. Aceitamos contribuições de apátridas, exilados e refugiados apolíticos. Dos outros também.

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